Viajando pela Comarca de Sabará – Quatro semanas nos caminhos do Sertão

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Texto escrito por Eduardo de Paula.

No século XVIII, um fidalgo e militar, Luís de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, foi um cidadão proeminente em Portugal. Como alferes, participou da guerra do Pacto de Família, no conflito que se desenrolou no período de abril a novembro de 1762, um dos desdobramentos da Guerra dos Sete Anos(1). Em 1764, foi nomeado capitão e ajudante de ordens do governador das Armas da Beira. Com pouco mais de 30 anos de idade, já era homem de larga experiência. Por indicação do marquês de Pombal, o rei de Portugal, d. José I, o incumbiu de assumir o posto de 4º governador da capitania de Mato Grosso. Substituiu a Luís Pinto de Souza Coutinho(2)− visconde de Balsemão − que, acometido por grave oftalmia e temendo ficar cego, retornou a Portugal. A nomeação foi assinada em 3 de julho de 1771 e, em 12 de outubro do mesmo ano, Cáceres embarcou em Lisboa com destino ao Rio de Janeiro.

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Existe um diário relatando a viagem de Cáceres, nos trechos de Lisboa ao Rio de Janeiro e, daí, a vila de Paracatu, na comarca de Sabará. O redator do diário não foi Cáceres, mas um auxiliar, pois a última frase, relatando a chegada ao Rio de Janeiro, diz: “… chegou o Sr. Marques a buscar os Srs. Governadores que [nós!] levámos.” Eram Cáceres e José de Almeida de Vasconcelos Soveral e Carvalho, este nomeado governador da capitania de Goiás. Cabe uma pergunta: quem escreveu o texto seria o verdadeiro autor ou teria anotado um ditado? Parece que ambas as coisas e mais, o próprio Cáceres deve ter escrito algumas linhas.

Luís Cáceres, 4º governador.
Luís Cáceres, 4º governador.

Os dois governadores, Balsemão e Cáceres – 3o e 4o mandatos –, eram naturalistas amadores. O interesse comum fez com que, após o retorno de Balsemão a Portugal, mantivessem contato por correspondência. Associados, remeteram para a Europa um número considerável de espécimens da flora e fauna brasileiras. Uma tônica, no diário do recém-chegado Cáceres, é a especial curiosidade pela natureza brasileira, muito exótica aos seus olhos europeus.

João Cáceres, 5º governador e Luís Pinto de Souza Coutinho, 3º governador.
João Cáceres, 5º governador e Luís Pinto de Souza Coutinho, 3º governador.

O 4º governador foi sucedido pelo irmão, João de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, exercendo o mandato Mato Grosso por pouco mais de seis anos, de 20.11.1789 até 28.02.1796, quando veio a falecer. Seu trabalho, em defesa dos interesses territoriais portugueses, foi muito importante ao conquistar a amizade dos belicosos indígenas da região, evitando que fizessem aliança com os espanhóis. Em 1791, conseguiu que seus líderes assinassem um Tratado de Paz com o governo, mais que isso, os transformou em vassalos da coroa portuguesa.

Casa da Ínsua, o solar da família Albuquerque, em Portugal.
Casa da Ínsua, o solar da família Albuquerque, em Portugal.

diário da viagem de Luís Cáceres foi descoberto pelo sociólogo e historiador Gilberto Freyre, nos arquivos da Casa da Ínsua, antiga residência dos Albuquerques, em Penalva do Castelo(4), na região da Beira. Retirado de um manuscrito, foi publicado(3) em 1966. A Casa da Ínsua foi construída por iniciativa de Luís Cáceres, graças a fortuna que o governador acumulou durante sua passagem pelo Brasil. Resultou num dos mais belos solares do país e passou a abrigar um magnífico acervo histórico, parte dele relativo ao Brasil setecentista. Ali foi depositada a documentação de Cáceres, como um livro de desenhos coloridos de borboletas, insetos e animais de Mato Grosso e mais um álbum com 100 desenhos de animais e 50 de plantas. Na década de 70, um incêndio devastador atingiu o cômodo que abrigava esse material de Cáceres e, talvez, muito do que viu Gilberto Freyre pode ter se perdido.

 

Sala dos retratos, na Casa da Ínsua.
Sala dos retratos, na Casa da Ínsua.

NA COMARCA DE SABARÁ

O caminho escolhido por Cáceres, de Sabará a Paracatu, era muito usado pelos viajantes da época. Não era uma estrada e sim uma picada, por isso se pode imaginar as dificuldades que o grupo enfrentou. O historiador Waldemar de Almeida Barbosa(5) faz referência a ela, dizendo:

“… em 1736, quatro caminhos para Goiás  passaram a fazer junção em Paracatu: a Picada de Goiás […] a de Pitangui a Goiás […] a que passava por São Romão […] e o caminho que transpunha o São Francisco  − este foi o de Cáceres −, na passagem do Espírito Santo, nas proximidades da barra do rio Abaeté […] Ora, se estes quatro caminhos diferentes iam se juntar em Paracatu, de onde apenas um continuava para Goiás,  e bem possível que nesse entroncamento houvesse […] casas de hospedagem […] e, provavelmente algum povoado  com recursos para os viajantes.”

Além de escolher um bom caminho, Cáceres foi um homem prevenido, pois deixou boa retaguarda em Portugal, que o socorria nas eventuais necessidades. No ano de 2003, esteve na casa da Ínsua a pesquisadora Leny Caselli Anzai(6), onde conheceu uma coleção de cartas que foram enviadas a Luís Cáceres por seu procurador Paulo Jorge. Elas mostram que havia um correio expresso, mais veloz do que o andar da caravana, mantendo Cáceres em permanente contato com o procurador. Esse representante prestou valiosa assistência, pois cuidou para que os viajantes não passassem falta de alimentos, supriu uma botica de emergência, devido às frequentes doenças que ocorriam, como também enviou notícias do reino. Em uma dessas cartas, há referências a dois lugares históricos situados no caminho do sertão, o sítio do Fidalgo e a vila de Paracatu. Numa delas, Paulo Jorge escreveu:

“Em 2 de setembro [1772] escrevi a vossa excelência o que se me oferecia. Depois, recebi duas regras, em data de 12 de junho, escrita no sitio do Fidalgo, 8 léguas de Sabará, e uma carta de 4 de julho, escrita no Arraial do Paracatu, com as diversas cartas que vossa excelência encaminhava, a que dei destino.”

De fato, está anotado no diário que, no dia 12 de junho foram dormir no Fidalgo. E que, no dia 3 de julho, estavam saindo rumo a Paracatu.

Para a boa fluência da leitura, o trecho do diário aqui transcrito − de Sabará a Paracatu − foi vertido, em parte, ao atual vernáculo, bem como melhorada a pontuação. Da mesma forma, se procedeu com alguns nomes geográficos, de animais, plantas, etc., corrigindo e fazendo a devida atualização. Espera-se que essa interferência não tenha modificado o teor do relato na sua essência.

O manuscrito de Cáceres tem o título “Acento da derrota que fizemos de Lisboa para o Rio de Janeiro em o ano de 1771”. A saída ocorreu no dia 12 de outubro e, no 51º dia de viagem, aportou no Rio de Janeiro. Depois dos necessários preparativos, em 17 de maio de 1772, iniciou a segunda etapa da viagem, atravessando a baía de Guanabara até Porto da Estrela, daí adentrando no país por terra, pelo chamado Caminho Novo, que o levaria a Minas Gerais.

Capela de Santana, no Arraial Velho, caminho de Cáceres para chegar a Sabará.

Cáceres chegou a Vila Rica no dia 1º de junho e, no prosseguimento, atingiu Sabará – sede de comarca(7) –, no dia 10, como deixou anotado:

“10 de Junho – Sabará – Saí de casa do coronel Luiz José [na região da atual Santo Antônio do Rio Acima] às 6 da manhã e cheguei às 11 3/4 ao Sabará. São cinco léguas, o caminho é muito mau, quase todo cheio de morros; passa-se sempre quase a borda do rio das Velhas que, de uma parte e outra, está cheio de lavras de ouro, de serviços de roda e outros trabalhos dificultosos; passa-se primeiramente pelos sítios chamados: Engenho de Água, com seu pequeno regato; arraial de Santa Rita que é bonito, que tem uma ponte de pau, que terá 60 braças, passa-se pelo rancho do Padre Pequenino, ribeirão do Padre Pequenino com sua ponte, arraial dos Raposos com sua ponte, chamado Borumado [Brumado], Arraial Velho, etc.Encontramos muitos destacamentos de tropas auxiliares para honrar – a terra de Sabará terá 6.000 ou 7.000 habitantes, tem ouvidor, intendente, etc. – aqui me demorei um dia, mas, de tarde, marchou alguma parte da comitiva para Santa Luzia.” 

Naquele tempo, diferentemente de hoje, se chegava a Sabará passando pelo alto do Arraial Velho − atualmente é um bairro da cidade − e atravessando a antiga ponte de madeira.

Sabará, no ano de 1869, por Augusto Riedel.
Sabará, no ano de 1869, por Augusto Riedel.

 RUMO AO SERTÃO

Retomando a viagem, em 12 de junho, durante praticamente um mês Luís Cáceres cavalgou pela comarca de Sabará e penetrou no sertão mineiro. No início, a rota margeava o rio das Velhas, em direção ao norte e, depois, desviava para noroeste, em direção a cidade de Paracatu, até atingir a comarca de Goiás e, finalmente, Mato Grosso. O caminho era suficientemente conhecido e a viagem foi bem planejada. O mapa utilizado para ilustrar este texto, desenhado por José Joaquim da Rocha(8), em 1778, mostra o antigo caminho.

Caminho de Cáceres no trecho da comarca do Sabará: ilustração usando mapa de José Joaquim Rocha (1778).

Cáceres estava bem informado sobre a comarca do Sabará, pois fez descrições muito corretas de lugares que estavam fora da sua rota. Começando mais uma etapa da viagem, escreveu:

“12 de Junho – Santa Luzia arraial do Figueiredo – Saí do Sabará às 5 horas e meia da manhã e cheguei ao arraial às 9 da manhã. São três léguas de distância, passam-se dois morros de muito mau caminho e, logo adiante do pequeno arraial de S. Gonçalo, se passam os lugares do alto da Soledade(9)o córrego da Laje e o dos Cordeiros, ambos com suas pontes. O arraial de Santa Luzia é grande e bonito, ali achei várias ordenanças, encontrei a partida de Goiás que trazia os quintos [imposto do quinto do ouro] e vieram acompanhados por vários oficiais de ordenança. 

No caminho, a Capela de Nossa Senhora da Soledade, entre Sabará e Santa Luzia.

Aqui se torna a encontrar o rio das Velhas. De tarde fui dormir ao Fidalgo(10) aonde fui dormir [sic] e se pousou com pouca comodidade; a três léguas de Santa Luzia se encontra ao todo deste [no local] uma lagoa, chamada a lagoa Santa Cruz [Lagoa Santa], sua água é muito medicinal(11); também se passa, logo em Santa Luzia, uma grande ponte sobre o Rio das Velhas; e mais adiante duas léguas até o Ribeirão da Mota [Mata], com sua ponte de madeira – são de todo quatro léguas.

 13 de Junho – Jaguara e Pau-de-Cheiro – Saí do Fidalgo às 6 horas e cheguei a Jaguara(12) às 9¾, são três léguas, o caminho é do Sumidouro(13), que terá um quarto de légua de comprido e 400 passos de largo; a duas léguas de distância se acha, a esquerda, outra lagoa pequena.

De tarde saí da Jaguara e cheguei ao Pau-de-Cheiro, são três léguas, cheguei pelas 5 horas. Na Jaguara torna a passar o rio das Velhas, que se não vê mais, e vai meter-se no rio de São Francisco; é uma passagem muito bonita, com engenho de açúcar, de serrar madeira. Situação airosa; lavras de ouro de meia oitava por semana, é fazenda muito grande, tem mais de oito léguas de comprimento. Da Jaguara para diante encontram-se algumas pequenas lagoas, a direita do caminho, também há uma a esquerda, tudo é bom caminho, campo excelente, a estrada segue a direção de oeste.

Capela de Santana, onde existiu o antigo povoado do Fidalgo.

14 de junho e 15 – O Melo – Saí do Pau-de-Cheiro às 4 e ½ da manhã, cheguei às 10 ao Melo, são seis léguas, é país de campos e tudo quase bom caminho; passa-se pelo registro(14) de Jequitibá, onde costuma patrulhar uma partida de dragões de Vila Rica; tem ao pé uma ribeira do mesmo nome, com sua ponte de madeira; passa-se pelo sítio e rancho da Taboca, e também tem sua ribeira com pontes, etc. A 15 [dia] também me demorei aqui todo o dia, se fizeram várias caçadas de perdizes codornizes, periquitos, rolas e outros pássaros. Da Taboca para diante é arcebispado da Bahia até o rio de S. Francisco; e, dali para diante, até os Arrependidos, é bispado de Pernambuco. 

Trecho de Sabará a Onça e, no detalhe, o antigo povoado do Fidalgo. (Mapa de J. J. Rocha)

16 de Junho – Maquiné – Saí do Melo às 3¾ da manhã e cheguei ao Maquiné às 9 e ¼. São seis léguas, o caminho é muito bom, passa-se pela ponte do Melo, sítio da Taboquinha, com seu regato ao pé; sítio da Onça, onde há seu rancho, aqui passa um pequeno ribeiro do mesmo nome, com sua ponte de madeira; aqui abarraquei pela primeira vez e matei muita pomba e rolas, é um rancho muito mau.

 17 de Junho – Falcão – Saí do Maquiné às 3 e ½ da manhã, cheguei ao Falcão às 9 e ½, são 6 e½, é caminho muito bom, o país é planície, mas com algum mato pequeno, passamos pelo ribeirão da Venda Nova, sítio da Venda Nova, sítio do Sicuriu [o mesmo que Sucuri], onde há uma má casa, aqui abarraquei e se lançaram ao pasto as bestas; é muito mau sítio, aqui adoeceu o Antônio Coelho.

18 – 19 de Junho – Bicudo – Saí de Falcão às 4 da manhã e cheguei ao Bicudo às 9. São cinco léguas; o caminho é planície com algum mato miúdo e muito campo; passa-se dois ribeirões e estes sem ponte e, junto do rancho, passa um ribeirito chamado o Bicudo, com sua ponte de madeira muito má.

Em o dia 19, ficamos neste mesmo sítio do Bicudo, por causa de não aparecerem dez bestas, as quais eram das que conduzem o mantimento e estas, botando-se ao pasto, se meteram ao mato, motivo da nossa demora deste dia, daqui por diante; em dois dias antes se acham muitos carrapatos pelo mato, que se pegam muito e mordem; há muitos pássaros chamados joão-de-barro, que são galantes pelos ninhos que fazem com sua divisão; há muitos veados, emas, perdizes, codornizes, rolas, etc., algumas onças, arataz [?].

Trecho de Onça ao Capão. (Mapa de J. J. Rocha)

20 de Junho – Pindaíbas – Saí do Bicudo pelas 4¼ da manhã e cheguei às 10 a Pindaíbas; são cinco léguas; o caminho é todo excelente, de campos, com algum pouco mato de quando em quando; passamos uma pequena ribeira sem ponte, pelo rancho da Sereja [?],com seu regato ao pé, quando daqui saiu o caseiro com duas cargas, um soldado e outro auxiliar; se perdeu um macho do caseiro e depois apareceu.

21 de Junho – Andrequicé – Saí das Pindaíbas às 3 ½ da manhã e cheguei às 9 a Andrequicé; são seis léguas, o caminho é excelente, tudo campo plano, com algum pouco mato de quando em quando. Passa-se o ribeirão do Funil e o do Boi, ambos sem ponte; foi o pior rancho que até aqui apareceu, não havia nada de comer; aqui vimos veados e muitos tuanois [tucanos?].

22 de Junho – Espírito Santo – Saí de Andrequicé às 4¼ da manhã, cheguei ao Espírito Santo às 10, são sete léguas boas; o caminho é muito bom, de campos, até quatro léguas de Andrequicé, daí por diante, passa-se uma grande descida de mais de meia légua de mau caminho.

Saindo do rancho antecedente, passa-se pelo regato perto, sem nome, com sua pontinha [pontezinha]; passa-se mais o ribeirão da Laje, o ribeirão Fundo e rio do Espírito Santo, todos sem ponte. Há muito tatu, muita arara, papagaios, macacos e tamanduá bandeira; o rancho do Espírito Santo não é coisa grande, mas é melhor que o antecedente. De noite choveu muito, mas melhorou de manhã; por todo este território fazia de noite e de manhã, principalmente, muito frio e assim continuou até o Paracatu.

No Abaeté, Cáceres mandou dar muitos tiros, para animar a festança de São João.

23 de Junho – Abaeté – Saí do Espírito Santo às 6½ da manhã, cheguei ao Abaeté às 10. São 2½, o caminho é bom até o rio de S. Francisco, mas pantanoso; é uma légua de distância. O rio de S. Francisco corre para o Sul, no sítio da passagem, mas logo toma para oeste, é muito grande, há de ter 700 passos de largo, passa-se em canoas atadas umas às outras; tem na margem ocidental umas más cabanas para os passadores e, diante dele, légua e meia, está o rio Abaeté, que se mete no meio [do] rio de S. Francisco, légua abaixo, e que terá 320 passos de largo, passa-se em canoa; tem um rancho na margem setentrional, onde me acomodei.

Em ambos estes rios costuma haver muitas sezões [febres] e tem muitos peixes surubis e dourados muito grandes. Fez muito frio de noite e se fizeram muitas fogueiras de S. João e, pelo mesmo motivo, mandei dar muitos tiros.

24 de junho – As Três Barras – Saí de Abaeté às 8½ da manhã e cheguei às Três Barras às 12½ . São cinco léguas, o caminho todo muito bom, tem algum mato; passa-se, a um quarto de légua do rancho, um ribeiro em que três outros fazem três barras [desembocaduras], o que lhe dá o nome.

25 de Junho – Capão – Saí das Três Barras pelo meio dia, cheguei ao Capão às 3¼. São quatro léguas. O caminho é muito bom, tivemos uma trovoada com alguma chuva, mas passou logo. Passam nesta terra quatro ribeiras ao todo, sem ponte, que no inverno ou tempo das águas hão de, às vezes, ser trabalhosas. O primeiro ribeirão chama-se da Areiao segundo o do Frade, o terceiro o do Buriti, o quarto o do Capão de Santo Tiago.

Trecho do Capão a Paracatu, aproximando-se da divisa com Goiás. (Mapa de J. J. Rocha)

26 de Junho – Santo Antônio da Boa Esperança – Saí do Capão às 7 horas da manhã e cheguei ao rancho de Santo Antônio às 11 horas. São quatro e meia léguas, o caminho quase todo é bom, porém tem algumas descidas e subidas, das quais se passam quatro mais pequenas e sem ponte. De manhã choveu alguma pequena coisa; em todos estes dias passados não fez calma, antes, de noite, bastante frio.

27 de junho – Capão do Rio do Sono – Saí de Santo Antônio da Boa Esperança pelas 6½ da manhã e cheguei aqui às 11 horas. São três léguas, o caminho é muito bom. Geralmente a três tiros de espingarda [distância] da Boa Esperança para riba [cima] havia ribeira muito grande que, em tempo de águas, é muito dificultosa a passagem; esta ribeira chama-se a de Santo Antônio, mas é verdadeiramente o rio do Sono; logo adiante se passa outra ribeira chamada das Almas, que igualmente se passa a vau [de água rasa] e é dificultosa com tempo de águas; mais adiante se passam dois pequenos riachos, os chamam Cachimbo, coisa fraca.

Estes dois primeiros ribeiros grandes de Santo Antônio e Almas correm para o norte o primeiro e o segundo para NE [nordeste]. O ribeiro de Santo Antônio corre para o norte e vai fazer barra no rio de Paracatu, depois de levar em si o rio do Sono e das Almas, e a ribeira de Cachimbo; esta barra é feita a 15 léguas da outra que faz no rio de S. Francisco; e a barra dista, que faz o Paracatu no rio de S. Francisco, nove léguas, se acha o arraial de S. Romão, na margem esquerda, indo pelo rio abaixo.

O rio da Prata mete-se no rio Paracatu meio quarto de légua para cima da passagem, a qual, por abuso, se chama passagem do rio da Prata, devendo ser passagem do rio Paracatu, em que já vem incluído o rio da Prata. Aqui foi o primeiro rancho onde tornamos a ver telha [cobertura de telhas] depois do Bicudo. Adiante do rio do Sono, a direita, toma outro caminho, chamado de S. José, o qual vai meter no que segue ao Vomitório ou antes um pouco.

Cena típica do sertão, com palmeira buriti e revoada de maritacas.

28 de Junho – As Almas – Saí do rancho antecedente pelas 6½ da manhã e cheguei às 11½. São cinco léguas; passa-se logo o rio do Sono, que é bastante grande, corre para o nascente; além da passagem, está um rancho do mesmo nome; logo adiante, está o regato do Atoleiro; o rio de S. Bartolomeu, que tem muita água, corre para o norte; o rio da Catinga também leva bastante água e corre também para o nascente. Adiante o rio das Almas, que é mediano; todos sem ponte e, em tempo de águas, serão muito dificultosos de passar. O rancho das Almas não presta para nada. Aqui adoeceu o rapaz Antônio Francisco e fugiu o mulato de José da Fonseca.

29 de Junho  Roça de Santa Isabel – Saí do rancho das Almas as 6½ da manhã e cheguei às 10½ a Santa Isabel. São quatro e meia léguas medianas; o caminho é excelente, menos o princípio, que passa entre um bosque, com suas subidas e descidas. Deste caminho se avistam as vastíssimas planícies chamadas de S. Jerônimo, a de Antônio de 25 ou 30 léguas, que rodeiam quase todo o horizonte pela banda do este, de nordeste e de SE [sudeste]. Não se acha água neste caminho. O rancho de Santa Isabel é bastante mau.

Acha-se muita caça por estes campos; além de perdizes e codornizes, há muito veado, onças, antas, etc.; há pássaros diversos muito grandes como emas, seriemas, coruacas [?], etc.

Trinta dias cavalgando na comarca do Sabará.

30 de Junho – Vomitório – Saí do rancho de Santa Isabel pelas 6½ da manhã e cheguei às 9¼. São três léguas: o caminho é planície pela distância de légua e meia, e logo se acha um alagadiço que, aos lados, tem uma espécie de lagoa e o resto do caminho é por entre um bosque de mato grande; o rancho do Vomitório vale muito pouco. O rio da Prata corre aqui e, adiante cinco léguas, se vai passar o rio Paracatu, onde já vai enchendo o da Prata, tendo feito barra meio quarto de légua acima. Aqui houve baile de noite, de batuque feito pelas moças da fazenda.

1o de Julho – Campo, légua e meia adiante do rio da Prata, chamado riacho das Almas. Saí do rancho Vomitório pelas 4 horas da manhã e cheguei a este sítio pelas 10, depois de ter feito a necessária demora em passar o rio. São seis e meia léguas, cinco ao rio e uma e meia a este lugar, onde passa um pequeno riacho, perto dum bocado de mato.

O rio da Prata, ou verdadeiramente Paracatu, é nocivo aos passageiros pelas más águas que leva; quando se passa leva já consigo o rio da Prata, que se mete pouco em cima da passagem e o rio Escuro, que pouco antes se mete no Paracatu. O rio é profundo e terá, neste lugar, 300 braças de largo; na margem oriental tem um rancho com bastantes comodidades e, da outra parte, também tem alguma casita. A gente passa em duas canoas e todos os cavalos a nado. O caminho até o rio é tudo planície, mas corre entre vários alagadiços e pantanais e o rio corre para o norte.

Espírito Santo e Paracatu; Arrependidos, em Goiás. Em verde: rios Paracatu e São Francisco. (Mapa de John Arrowsmith, 1832)

2 de Julho – Córrego Rico  Saí do rancho passado pelas 4¾ da manhã e cheguei a Córrego Rico pelas 11 da manhã. São seis léguas; o caminho não é mau, mas tem seus montes, passam-se dois pequenos riachos com pontes de madeira; passa-se no mau rancho do Olho de Água, meia légua adiante a direita está uma grande lagoa, que dá princípio a um ribeirão; este tem muito peixe e muito sucureu [sucuri?], mas é muito nociva a sua vizinhança. No meio do caminho se matou um tamanduá, de que se tirou a vista. O rancho do Córrego Rico não é mau aqui; principiam outra vez as minas do ouro.

3 de Julho – Paracatu – Saí do Córrego Rico às 7 ½ da manhã e cheguei a este arraial às 10 horas. São três léguas pequenas, o caminho é muito bom, passa-se por uma pequena ponte sobre um ribeiro, de madeira, e pelo reguto [registo, registro] ou coutagem [contagem] de Nazaré, pelo rancho de Nazaré, a que, em distância de uma légua, se achava um esquadrão de cavalaria auxiliar, e vieram esperar muitas gentes da terra, que é bastante grande e merecia ser vila; tem 600 vizinhos e mais de 5.000 pessoas. O sítio [lugar] é bonito, numa planície, havia muitas lavras de ouro e, já noutro tempo, foram muito maiores; aqui nos fizeram os maiores obséquios e nos demoramos três dias de quedo [estada] e, no dia 7, se continuou a jornada para Goiás.”

Da direita para a esquerda: Paracatu, Vila Boa, Cuiabá e Vila Bela. (Mapa de John Arrowsmith, 1832)

GOIÁS E MATO GROSSO

Saindo de Paracatu, Cáceres entrou em Goiás pelo caminho que passava pelo arraial dos Arrependidos, até alcançar Vila Boa. Dalí, prosseguiu, em direção a Mato Grosso, passando por Cuiabá e chegando a Vila Bela, seu destino final(15). Para o amante da natureza e cavaleiro de primeira viagem ao Brasil, certamente foi uma aventura e tanto!

Por Eduardo de Paula via blog Sumidoiro.

• Luís de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres (* 21.10.1739 + 07.07.1797, Lisboa) − Governou Mato Grosso, de 13.12.1772 a 20.11.1789, retornando a Portugal em 1791. Foi Conselheiro de Estado, membro do Conselho Ultramarino, Coronel de cavalaria, Comendador da Ordem de Cristo. Por sua determinação, em 06.10.1778, o tenente Antônio Pinto do Rego e Carvalho fundou a cidade que levou seu nome: Cáceres. // • João de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres (* 1741 + 28.02.1796, Vila Bela) − Governou Mato Grosso, de 20.11.1789 a 28.02.1796.

– – – – –
(1) Guerra dos Sete Anos – Conflitos internacionais, ocorridos entre 1756 e 1763, durante o reinado de Luís XV.
(2) COUTINHO, Luís Pinto de Souza (visconde de Balsemão) − (* 27.11.1735 +14.04.1804) − Mandato de governador de Mato Grosso: 03.01.1769 a 13.12.1772. Nomeado governador de Mato Grosso, por carta régia de 21.08.1767. Regressou a Portugal em 13.12.1772.
(3) FREYRE, Gilberto – “Contribuição para uma sociologia da biografia: o exemplo de Luís Albuquerque, governador de Mato Grosso, no fim do século XVIII”; fonte “O Portal da História” (internet).
(4) Penalva do Castelo: cidade situada na região do alto Dão, Portugal.
(5) BARBOSA, Waldemar de Almeida − “Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais”, Ed. Itatiaia, 1995.
(6) ANZAI, Leny Caselli − “História, Cultura e Sentimento: Outras Histórias do Brasil”, Editoras UFPE e UFMT, 2008, p. 168 a 185.
(7) Comarca de Sabará, também chamada comarca do Rio das Velhas. Era a maior da capitania de Minas Gerais. Limitava ao sul com as comarcas do Rio das Mortes e de Vila Rica, a leste com a do Serro Frio, a oeste com a de Goiás e, ao norte, com a de Pernambuco.
(8) ROCHA, José Joaquim da – Engenheiro militar português e cartógrafo. Viveu no Brasil na segunda metade do século XVIII.
(9) Alto da Soledade: denominação do topo de um morro em Sabará, onde foi construída a capela de Nossa Senhora da Soledade. (Vide o Post “No alto daquela serra”).
(10) Fidalgo: antigo povoado, próximo a Lagoa Santa, na região onde foi assassinado o fidalgo castelhano d. Rodrigo Castello Branco, a mando do bandeirante Borba Gato. Restou a capela de Santana, em ruínas, situada na Fazenda do Fidalgo. O mapa de José Joaquim da Rocha indica o povoado, que não deve ser confundido com o atual Fidalgo (junto a Quinta do Sumidouro), pertencente ao município de Pedro Leopoldo. No diário, Cáceres deixa bem clara a localização do Fidalgo: “Saí do Fidalgo […] e cheguei a Jaguara, são três léguas, o caminho é do (que vai para o) Sumidouro…” O atual Fidalgo fica depois da Quinta do Sumidouro. No Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais, Waldemar de Almeida Barbosa diz: “A vila hoje denominada Fidalgo […] nada tem com o antigo e primitivo arraial de Fidalgo.”/// Interpretação do percurso do dia 12 de junho: Saída de Sabará, tomando o caminho que passa pelo alto da Soledade, para chegar a Santa Luzia. Total, 3 léguas – Prosseguimento em direção oeste, até a ponte do ribeirão da Mata (localizada na atual cidade de Vespasiano); distância, 2 léguas. Daí, subindo a serra, até Lagoa Santa e, finalmente, chegando ao Fidalgo. Total, 4 léguas.
(11) MIRANDA, Antônio [frei] − Morador de Sabará, foi o primeiro a atribuir qualidades medicinais às águas de Lagoa Santa, dizendo-se curado de suas chagas ao banhar-se no lago.
(12) Jaguara: Sede de conjunto de antigas fazendas, às margens do rio da Velhas, no atual município de Matozinhos. A propriedade foi fragmentada, restando a parte denominada Jaguara Velha, com algumas construções remanescentes.
(13) Sumidouro: Povoado conhecido por Quinta do Sumidouro, junto ao lago e a lapa de mesmo nome, onde o bandeirante Fernão Dias construiu uma casa. Hoje pertence ao município de Pedro Leopoldo.
(14) Registro ou contagem – Posto onde era feita a fiscalização do trânsito de mercadorias e a cobrança dos impostos.
(15) Arrependidos: arraial ao pé da serra dos Arrependidos, em Goiás, onde havia um registro para cobrança de tributos. Vila Boa (GO): onde Cáceres chegou em 25 de julho, permanecendo até o dia 27 de agosto. Vila Boa, teve o nome mudado para Goiás Velho e, hoje, chama-se Goiás. Dalí, saiu para Cuiabá (MT), onde chegou em 4 de outubro. Cáceres permaneceu em Cuiabá até 12 de novembro, saindo para Vila Bela, sede da capitania de Mato Grosso, onde chegou em 5 de dezembro.
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