A casa construída por Luciene Oliveira aproveita restos de construção e desmonte de moradias antigas recolhidos desde 2011, cada um com uma história bem particular.
por Gustavo Werneck do em.com.br
A casa ainda não está pronta, mas quem chega é muito bem-vindo. E, com toda a certeza, vai se surpreender com a construção, o jeito bem particular de a proprietária encarar o mundo e o uso do material no espaço de 32 metros quadrados. Em Sabará, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, a lei de Lavoisier – nada se cria, tudo se transforma – é levada “quase” ao pé da letra pela arquiteta e dona do imóvel, Luciane Oliveira, de 41 anos, declaradamente livre para dar forma aos seus projetos. Se a primeira parte da frase perde o sentido, pois Luciane esbanja criatividade, a segunda ganha força a cada olhada: suportes de ponto de ônibus, encontrados na rua, viraram esteio da varanda, concreto de calçadas foi parar na parede da sala e tijolos de adobe de um barracão demolido estão no banheiro. “Minha casa é feita de material disponível. Desde criança, sou contra o desperdício e ajo assim na vida e na obra”, afirma.
A expectativa de Luciane é deixar a casa habitável no prazo de um mês, quando então viajará para a Suíça, onde mora o namorado. Enquanto não embarca, comanda a equipe de três trabalhadores, incluindo duas mulheres – as ajudantes de pedreiro e irmãs Viviane Martins da Silva, mãe de três filhas, e Josiane Martins Braga, casada e sem filhos –, fica atenta a todos os detalhes, com seu jeito despachado, e se deslumbra com a paisagem vista do alto do Bairro Francisco de Moura: o Morro Dois Irmãos e o Centro Histórico de Sabará, com destaque para a fachada das igrejas do Carmo, Mercês, Rosário e São Francisco. Na manhã de ontem, Luciane se mostrava satisfeita com o teste de segurança enfrentado pela moradia, pois o temporal de quarta-feira não provocou qualquer dano.
A ideia de fazer a casa “com o material que encontro pela frente” surgiu há três anos, no momento em que Luciane deixava uma empresa da qual era sócia, em Belo Horizonte. Inicialmente, pensou em construir, para investimento, quatro moradias geminadas no recém-adquirido lote de 450 metros quadrados, na Rua Ipê Amarelo, mas se sentindo em total liberdade e feliz, decidiu se fixar na terra natal e construir algo novo, original. E refletiu: “O dinheiro é meu, o projeto é meu e a responsabilidade é minha”.
Para entender melhor a casa em construção só mesmo indo até a base. E é bom saber que Luciane, mesmo planejando cada passo, faz tudo na tora (no peito e na raça), tanto que criou um blog, que será atualizado, para narrar a empreitada (natora.blogspot.com). Ao começar, em setembro de 2011, a arquiteta pensou em fazer a casa toda de terra, “que duraria 10 mil anos”, mas achou melhor se espelhar nos baldrames de pedras construídos pelos escravos nas casas coloniais brasileiras. Só que no lugar das pedras, usou cacos de concreto encontrados nas caçambas. “Comprei uma caminhonete baratinha e, durante duas semanas, eu e o pedreiro Pedro Higino parávamos em qualquer esquina e enchíamos a carroceria. Foi um trabalho ininterrupto e sem acúmulo de resíduos no terreno”, afirma Luciane, formada há 16 anos na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Cada parte da futura residência é mostrada com orgulho. Os pedaços têm uma história, e Luciane sabe que, além da sua, reúne ali a memória de outras pessoas, inclusive de familiares e amigos, e de construções alheias. A parede da janela mais parece uma colcha de retalhos, embora em cores neutras e num efeito de bom gosto. Lá estão cacos da calçada da Avenida Antônio Carlos, na capital, recolhidos durante a duplicação, tijolos refratários e de concreto, vidros, retalhos de ardósia, uma pedra de minério de ferro, dada de presente por uma criança, pequenos tijolos de uma loja de produtos infantis que havia no alto da Avenida Afonso Pena, na Região Centro-Sul da capital, e dezenas de retalhos de construção. “Os bota-foras são abundantes em material e um problema para a administração pública. Encontrei muito do que precisava num bota-fora na estrada de Marzagão, entre BH e Sabará”, diz a arquiteta.
Na mesma sala, há um contraste de impacto. Outra parede foi erguida num sistema construtivo do século 18, a taipa-de-pilão, anterior ao pau-a-pique. “Em Basileia, na Suíça, conversei com um técnico de um instituto de arquitetura local e ele me disse para experimentar. Então, fiz a parede misturando seis partes de terra, duas de terra de cupim do distrito de Santo Antônio de Pompéu, três de areia, cimento e cal a gosto.”
ENERGIAS Quando mais se anda pela casa, que terá a cara de um loft (sala, cozinha e banheiro), mais cresce a curiosidade em saber de onde tudo aquilo saiu. Luciane tem as respostas: “O vaso sanitário pertenceu, acredito, a um restaurante de BH, pois estava dentro da caçamba, na porta; a pia, comprei por R$ 50, num sítio, e estava velha e enferrujada; e as calhas são de luminárias de lâmpadas fluorescentes”. Algumas partes da casa, no entanto, falam direto ao coração. Um deles é a janela da frente, que havia na casa em que morou, nos tempos de criança, em Sabará, e a porta em duas bandas, encontrada na casa de material de construção pertencente a família há décadas. “É uma casa ecológica, sustentável e afetivamente correta”, resume a arquiteta.
A versatilidade impera na construção da casa de Luciane Oliveira. “Todo mundo é pau pra toda obra, pedreiro, carpinteiro, enfim, fazemos tudo”, conta. Trabalhando pela primeira vez como ajudante de pedreiro, Viviane Martins da Silva, de 33 anos, está gostando do desafio. “Aprendo muito e estou feliz por ter uma profissão”, afirma. A irmã dela, Josiane Martins Braga, tem mais experiência, pois pegou “a maldade” da atividade com a tia, pedreira profissional. “A ideia de fazer a casa desse jeito é muito bacana. Depois dessa, seria capaz de construir uma para mim”, diz Josiane.
PROPOSTA Trabalhando na estrutura na qual será instalada a caixa-d’água, o carpinteiro e pedreiro Carlos Martins de Oliveira, de 28, comunga dos mesmos ideais e diz que a chefe só não gosta de atraso. “Todas as peças que chegam recebem um tratamento antes de serem postas no lugar”, diz o trabalhador. Aos 74 anos, Ivarte Nonato da Fonseca, montou o sistema hidráulico, solda metais e faz outros serviços. “Já vi, em São Paulo, uma casa feita com garrafas PET, mas desse jeito ainda não. É uma proposta muito interessante”, diz Ivarte. Luciane ainda não pôs no papel todos os gastos mas, na sua opinião, o fundamental é dar um destino nobre ao refugo. “Trata-se de uma forma de ajudar a salvar o planeta, aproveitar material que está descartado e poluindo o ambiente.” Ainda sobre os custos, ela conta que “pode ser que fique no mesmo preço de uma casa de 32 metros quadrados, pois, neste caso, é um serviço demorado e a mão de obra custa caro”.
Ecologia e sustentabilidade andam de mãos dadas na casa de Luciane. E o telhado foi todo projetado dentro da arquitetura verde ou viva, com um sistema de impermeabilização que permite o plantio de espécies, como dinheiro-em-penca, que nasce no próprio terreno. Nesse serviço, Luciane conta com o auxílio das amigas, a arquiteta Sílvia Herval, e a psicóloga Ângela Guerra, que se deslocam uma vez por semana de BH para Sabará. No terreno, está sendo aplicado o conceito de agrofloresta, que significa respeitar o ciclo da natureza, fazer compostagem, aproveitar os restos de capina e deixar florescer o que a natureza mandar.
Créditos á Gustavo Werneck do em.com.br